quarta-feira, 22 de maio de 2013

Fundir vida e teatro



(Entrevista da companhia valenciana El Pont Flotant ao periódico espanhol Diagonal, em 20/05/2013. Tradução: Haroldo Gomes)

Praticantes entusiastas da criação coletiva, Joan Collado, Jesús Muñoz, Àlex Cantó e Pau Pons explicam uma década de trabalho, uma trajetória insólita no panorama cênico espanhol. Em fevereiro e março apresentaram no Festival Cena Contemporânea de Madrid e no Quintal de Comédias de Alcalá de Henares Algumas pessoas boas, a última peça de uma involuntária trilogia que funde vida e teatro.

Eles fazem parte da companhia valenciana El Pont Flotant (O Ponto Flutuante).

Seu primeiro trabalho, What a wonderful war!, inspirado em Madre Coraje, coincidiu com as invasões do Afeganistão e Iraque, e as mobilizações cidadãs contra a guerra. Por que vocês elegeram a gestualidade como expressão principal?

What a wonderful war! (2003) começa a ser gestada após os atentados do 11S e consequente invasão do Afeganistão, que nos pegou com vinte e poucos anos. Percebemos tão claramente os interesses, o negócio, a crueza, a injustiça e o inumano da guerra, que fez com que, pouco a pouco, se convertesse no tema do nosso primeiro trabalho. Era o começo do grupo e seguíamos um treinamento físico e vocal com o qual experimentávamos as possibilidades expressivas do corpo e da voz do ator. Abordar Madre Coraje desde a gestualidade foi a maneira mais direta de dar uma saída artística a todo aquele trabalho de experimentação. Elegemos as cenas e personagens mais significativos da obra, trabalhamos sobre seu esqueleto e nos pusemos a improvisar. Quase sem nos dar conta, fomos construindo uma gestualidade que roçava o animal e que nos ajudou a expressar a crueza e os segredos da guerra, concentrados em cinco personagens que perambulavam pelo campo de batalha buscando literalmente a vida. 

Por quê trabalhar a partir de vocês mesmos?

Depois de What a wonderful war! estreamos Trânsito, a viagem de Juanillo Cabeza (2004), centrada na  manipulação do indivíduo na sociedade. Mas o resultado não transmitia cem por cento daquilo quer queríamos expressar. Não sentíamos que aquela história fosse necessária. Faltava-lhe verdade. Demo-nos um tempo de reflexão até que sentimos a necessidade de voltar a nosso espaço de criação sem pressa, sem a pressão de estrear em nenhum festival e sem grandes pretensões. Como pedras começa a ser gestado no final de 2005. Elegemos o tema da passagem do tempo e da memória, mas desta vez quisemos abordá-lo desde nossa biografia e de maneira muito mais sensível e direta. Muitas vezes, depois de assistir a uma peça, nos encontrávamos comentando como a excessiva teatralidade, as convenções, a maneira de “falar/interpretar” de alguns atores tão grandiloquente ou tão “externa”, nos distanciavam do discurso e, sobretudo, da emoção que pretendia transmitir a peça. Nesse sentido, tínhamos a necessidade de trabalhar desde um lugar muito mais próximo de nós mesmos, com nosso corpo e nossa voz e maneira de falar. Aproximar tanto quanto pudéssemos nossa interpretação e nosso discurso da obra à realidade do espectador.

Através do jogo chegamos a um ponto sem retorno: se queríamos ser fiéis aos princípios que havíamos semeado, num momento determinado da obra teriam que sair nossos pais – de verdade – e colaborar na peça nos tirando de uma piscina inflável cheia de água. Essa era a maneira “real” de sair da piscina quando você era pequeno, que sua mãe lhe pegasse pelo braço e lhe tirasse à força enquanto você dizia: “Mas você está com os lábios roxos!”. Então, dessa maneira tão “casual” introduzimos três elementos “reais” na peça, além de utilizar fotografias nossas, vídeos, brinquedos, etc.

Com Algumas pessoas boas vocês concluem “uma trilogia do tempo”. Como surgiu a idéia de fazer um ciclo?

Nunca houve uma idéia de fazer uma trilogia. Foi casual ou inconsciente. Tem sido um processo natural. Sempre começamos as criações partindo da necessidade de refletir sobre algum tema que nos inquieta ou que nos interessa e que está ligado a nosso processo vital. Algumas pessoas boas (2011) responde a outro momento vital, o tema do compromisso social e do perigo de nos acomodarmos com a passagem do tempo. Em plena fase de criação nos demos conta de que estávamos fechando uma etapa como pessoas, como grupo e como criadores. 

Por que vocês adotam a criação e direção coletiva?

Pau sempre tem maior responsabilidade no trabalho sobre a dramaturgia de cada obra, mas as propostas têm sido sempre coletivas. Os quatro coincidimos bastante em gostos e preferências artísticas, pertencemos a uma mesma geração e, acima de tudo, somos amigos. Tudo isso ajuda a que a criação coletiva seja fácil e enriquecedora. Somos capazes de ver melhor as propostas dos companheiros do que as nossas próprias. Não nos custa trabalhar como próprias as ações, textos ou discursos do outro. Há plena confiança para assumir que não há um autor, mas que as idéias acabam pertencendo a todos um pouco e a ninguém em concreto. Todos nos levamos, por igual, tanto o mérito quanto a decepção final, coisa que libera você também de responsabilidades e prejuízos durante o processo, já que não serás o único responsável pela criação, sempre estará acompanhado nesse caminho.

Como vocês trabalham cada peça?

O processo de criação coletiva nas três peças tem sido muito similar. Elegemos o tema entre todos e vamos recolhendo material sobre ele: textos científicos, literários, divulgativos; imagens e vídeos; idéias para cenas e improvisações. Como atores-criadores vamos pondo parte desse material de pé: improvisando, lendo um texto aqui, modificando outro ali, etc. E chegado o momento em que temos pesquisado e jogado bastante com ele, se separam um pouco os papéis e é quando Pau, com a ajuda de Jesús, vai dirigindo com mais detalhe a ordem das partes, o discurso que se vai contando, limpando cenas, etc.

É o momento também no qual Joan se encarrega de modelar o espaço cênico definitivo e Àlex vai visualizando o desenho de luzes. É fundamental esta separação de papéis nesse ponto em que, de nossa experiência, temos a necessidade de trabalhar ao final do processo com um só olho de fora, um olhar que ordene, organize e centre o discurso. Se não, tudo acabaria sendo um caos de informação, de múltiplos olhares, de discursos inacabados ou contraditórios.

O que apresenta sua nova criação Eu de maior quero ser Fermín Jiménez?

A imposição – geralmente social – de dedicar mais horas ao trabalho do que a qualquer outra atividade. Na sociedade que vivemos não paramos de construir, de gerar, de criar, quando estamos rodeados de excedentes por todas as partes, só que mal partilhados. Eu de maior quero ser Fermín Jimenéz é uma ode a viver com tranquilidade, a não nos preocuparmos se nos falta dinheiro ou se chegamos ao final do mês, à alegria e ao bom humor. A tomarmos as coisas com filosofia, tirando peso da vida e desfrutando as coisas que realmente valem a pena: os filhos, a família, as afeições que nos enchem, etc. Ser um pouco mais Fermín Jiménez, um amigo nosso que vive a vida muito melhor do que nós. (Além de amigo, Jiménez é criador dos vídeos que integram as obras da companhia).

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