(Entrevista da companhia valenciana El Pont Flotant ao periódico espanhol
Diagonal, em 20/05/2013. Tradução: Haroldo Gomes)
Praticantes entusiastas da criação coletiva, Joan
Collado, Jesús Muñoz, Àlex Cantó e Pau Pons explicam uma década de trabalho,
uma trajetória insólita no panorama cênico espanhol. Em fevereiro e março
apresentaram no Festival Cena Contemporânea de Madrid e no Quintal de Comédias
de Alcalá de Henares “Algumas pessoas boas”, a última peça de uma involuntária trilogia que funde vida e teatro.
Eles fazem parte da companhia valenciana El
Pont Flotant (O Ponto Flutuante).
Seu primeiro trabalho, What a wonderful war!, inspirado em
Madre Coraje, coincidiu com as invasões do Afeganistão e Iraque, e as
mobilizações cidadãs contra a guerra. Por que vocês elegeram a gestualidade
como expressão principal?
What a wonderful war! (2003) começa a ser gestada após
os atentados do 11S e consequente invasão do Afeganistão, que nos pegou com
vinte e poucos anos. Percebemos tão claramente os interesses, o negócio, a
crueza, a injustiça e o inumano da guerra, que fez com que, pouco a pouco, se
convertesse no tema do nosso primeiro trabalho. Era o começo do grupo e
seguíamos um treinamento físico e vocal com o qual experimentávamos as
possibilidades expressivas do corpo e da voz do ator. Abordar Madre Coraje desde a gestualidade foi a
maneira mais direta de dar uma saída artística a todo aquele trabalho de
experimentação. Elegemos as cenas e personagens mais significativos da obra,
trabalhamos sobre seu esqueleto e nos pusemos a improvisar. Quase sem nos dar
conta, fomos construindo uma
gestualidade que roçava o animal e que nos ajudou a expressar a crueza e os
segredos da guerra, concentrados em cinco personagens que perambulavam pelo
campo de batalha buscando literalmente a vida.
Por quê trabalhar a partir de
vocês mesmos?
Depois de What
a wonderful war! estreamos Trânsito,
a viagem de Juanillo Cabeza (2004), centrada na manipulação do indivíduo na sociedade. Mas o
resultado não transmitia cem por cento daquilo quer queríamos expressar. Não
sentíamos que aquela história fosse necessária. Faltava-lhe verdade. Demo-nos
um tempo de reflexão até que sentimos a necessidade de voltar a nosso espaço de
criação sem pressa, sem a pressão de estrear em nenhum festival e sem grandes
pretensões. Como pedras começa a ser
gestado no final de 2005. Elegemos o tema da passagem do tempo e da memória,
mas desta vez quisemos abordá-lo desde nossa biografia e de maneira muito mais
sensível e direta. Muitas vezes, depois de assistir a uma peça, nos encontrávamos
comentando como a excessiva
teatralidade, as convenções, a maneira de “falar/interpretar” de alguns atores
tão grandiloquente ou tão “externa”, nos distanciavam do discurso e, sobretudo,
da emoção que pretendia transmitir a peça. Nesse sentido, tínhamos a
necessidade de trabalhar desde um lugar muito mais próximo de nós mesmos, com
nosso corpo e nossa voz e maneira de falar. Aproximar tanto quanto pudéssemos
nossa interpretação e nosso discurso da obra à realidade do espectador.
Através do jogo chegamos a um ponto sem retorno: se
queríamos ser fiéis aos princípios que havíamos semeado, num momento
determinado da obra teriam que sair nossos pais – de verdade – e colaborar na
peça nos tirando de uma piscina inflável cheia de água. Essa era a maneira “real”
de sair da piscina quando você era pequeno, que sua mãe lhe pegasse pelo braço
e lhe tirasse à força enquanto você dizia: “Mas você está com os lábios roxos!”.
Então, dessa maneira tão “casual” introduzimos três elementos “reais” na peça,
além de utilizar fotografias nossas, vídeos, brinquedos, etc.
Com Algumas pessoas boas vocês concluem “uma trilogia do tempo”. Como
surgiu a idéia de fazer um ciclo?
Nunca
houve uma idéia de fazer uma trilogia. Foi casual ou inconsciente. Tem sido um
processo natural. Sempre começamos as criações partindo da necessidade de
refletir sobre algum tema que nos inquieta ou que nos interessa e que está
ligado a nosso processo vital. Algumas
pessoas boas (2011) responde a outro momento vital, o tema do compromisso
social e do perigo de nos acomodarmos com a passagem do tempo. Em plena fase de
criação nos demos conta de que estávamos fechando uma etapa como pessoas, como
grupo e como criadores.
Por que vocês adotam a criação e
direção coletiva?
Pau sempre tem maior responsabilidade no trabalho
sobre a dramaturgia de cada obra, mas as propostas têm sido sempre coletivas.
Os quatro coincidimos bastante em gostos e preferências artísticas, pertencemos
a uma mesma geração e, acima de tudo, somos amigos. Tudo isso ajuda a que a
criação coletiva seja fácil e enriquecedora. Somos capazes de ver melhor as
propostas dos companheiros do que as nossas próprias. Não nos custa trabalhar como
próprias as ações, textos ou discursos do outro. Há plena confiança para assumir que não há um autor, mas que as idéias
acabam pertencendo a todos um pouco e a ninguém em concreto. Todos nos
levamos, por igual, tanto o mérito quanto a decepção final, coisa que libera
você também de responsabilidades e prejuízos durante o processo, já que não
serás o único responsável pela criação, sempre estará acompanhado nesse
caminho.
Como vocês trabalham cada peça?
O processo de criação coletiva nas três peças tem
sido muito similar. Elegemos o tema entre todos e vamos recolhendo material
sobre ele: textos científicos, literários, divulgativos; imagens e vídeos;
idéias para cenas e improvisações. Como atores-criadores vamos pondo parte
desse material de pé: improvisando, lendo um texto aqui, modificando outro ali,
etc. E chegado o momento em que temos pesquisado e jogado bastante com ele, se
separam um pouco os papéis e é quando Pau, com a ajuda de Jesús, vai dirigindo
com mais detalhe a ordem das partes, o discurso que se vai contando, limpando
cenas, etc.
É o momento também no qual Joan se encarrega de
modelar o espaço cênico definitivo e Àlex vai visualizando o desenho de luzes.
É fundamental esta separação de papéis nesse ponto em que, de nossa
experiência, temos a necessidade de trabalhar ao final do processo com um só
olho de fora, um olhar que ordene, organize e centre o discurso. Se não, tudo
acabaria sendo um caos de informação, de múltiplos olhares, de discursos
inacabados ou contraditórios.
O que apresenta sua nova criação
Eu de maior quero ser Fermín Jiménez?
A imposição – geralmente social – de dedicar mais
horas ao trabalho do que a qualquer outra atividade. Na sociedade que vivemos
não paramos de construir, de gerar, de criar, quando estamos rodeados de
excedentes por todas as partes, só que mal partilhados. Eu de maior quero ser Fermín
Jimenéz é uma ode a viver com tranquilidade, a não nos preocuparmos se nos
falta dinheiro ou se chegamos ao final do mês, à alegria e ao bom humor. A
tomarmos as coisas com filosofia, tirando peso da vida e desfrutando as coisas
que realmente valem a pena: os filhos, a família, as afeições que nos enchem,
etc. Ser um pouco mais Fermín Jiménez, um amigo nosso que vive a vida muito
melhor do que nós. (Além de amigo, Jiménez é criador dos vídeos que integram as
obras da companhia).